Este blogue estreia com uma pergunta: o Espiritismo é uma religião? A resposta foi dada por Allan Kardec em discurso, posteriormente publicado pela Revista Espírita - Jornal de Estudos Psicológicos (dezembro de 1868).
O texto a seguir, retirado da Revista..., é bem longo, mas nele reconhecemos a nobreza de caráter e a benevolência características do Codificador da Doutrina Espírita.
O texto a seguir, retirado da Revista..., é bem longo, mas nele reconhecemos a nobreza de caráter e a benevolência características do Codificador da Doutrina Espírita.
SESSÃO ANUAL
COMEMORATIVA DOS MORTOS
(Sociedade de Paris, 1° de novembro de 1868)
DISCURSO DE ABERTURA PELO SR. ALLAN KARDEC (1)
(1) A primeira parte desse discurso foi tomada de uma publicação
anterior sobre a Comunhão de pensamentos, mas que era necessário
iembrar, por causa da sua ligação com a idéia principal.
O Espiritismo é uma religião?
"Em qualquer lugar que se encontrem duas ou três
pessoas reunidas em meu nome, eu me encontro ali no meio delas." (S.
Mateus, cap. XVIII, v. 20.)
Caros irmãos e irmãs espíritas,
Estamos
reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar
àqueles de nossos irmãos que deixaram a Terra, um testemunho particular de simpatia;
para continuar as relações de afeto e de fraternidade que existiam entre eles e
nós quando vivos, e para chamar sobre eles as bondades do Todo-Poderoso. Mas
porque nos reunir? Não podemos fazer, cada um em particular, o que nos propomos
fazer em comum? Que utilidade pode nisto terem se reunir assim num dia
determinado?
Jesus
no-lo indica pelas palavras que reportamos acima. Esta utilidade está no resultado
produzido pela comunhão de pensamentos que se estabelece entre pessoas reunidas
com um mesmo objetivo.
Mas
compreende-se bem toda a importância desta palavra: Comunhão de pensamentos?
Seguramente, até este dia, poucas pessoas dela se fizeram uma idéia completa.
O Espiritismo, que tantas coisas nos explica pelas leis que nos revela, vem ainda
nos explicar a causa, os efeitos e o poder desta situação do Espírito.
Comunhão
de pensamento quer dizer pensamento comum, unidade de intenção, de vontade, de
desejo, de aspiração. Ninguém pode desconhecer que o pensamento seja uma força;
mas é uma força puramente moral e abstrata? Não; de outro modo não se explicariam
certos efeitos do pensamento, e ainda menos da comunhão de pensamento. Para
compreendê-lo, é preciso conhecer as propriedades e a ação dos elementos que constituem
a nossa essência espiritual, e é o Espiritismo que no-lo ensina.
O
pensamento é o atributo característico do ser espiritual; é ele que distingue o
espírito da matéria: sem o pensamento, o espírito não seria espírito. A vontade
não é um atributo especial do espírito, é o pensamento chegado a um certo grau
de energia; é o pensamento tornado força motora. É pelo pensamento que o
espírito imprime aos membros e ao corpo os movimentos num sentido determinado.
Mas se ele tem o poder de agir sobre os órgãos materiais, quanto esta força deve
ser maior sobre os elementos fluídicos que nos cercam! O pensamento age sobre os
fluidos ambientes, como o som age sobre o ar; esses fluidos nos trazem o
pensamento como o ar nos traz o som. Pode-se, pois, dizer com toda a verdade
que há nesses fluidos ondas e raios de pensamentos que se cruzam sem se
confundirem, como há no ar ondas e raios sonoros.
Uma
assembléia é um foco de onde irradiam pensamentos diversos; é como uma orquestra,
um coro de pensamentos onde cada um produz uma nota. Disto resulta uma multidão
de correntes e de eflúvios fluídicos dos quais cada um recebe a impressão pelo sentido
espiritual, como num coro de música, cada um recebe a impressão dos sons pelo sentido
do ouvido.
Mas,
do mesmo modo que há raios sonoros harmônicos ou discordantes, há também
pensamentos harmônicos ou discordantes. Se o conjunto é harmônico, a impressão
é agradável; se é discordante, a impressão é penosa. Ora, por isto, não há necessidade
de que o pensamento seja formulado em palavras; a irradiação fluídica não existe
menos, quer ela seja expressada ou não; se todos são benevolentes, todos os assistentes
nele experimentam um verdadeiro bem-estar, e se sentem comodamente; mas se é
misturada com alguns pensamentos maus, eles produzem um efeito de uma corrente de ar gelado no meio tépido.
Tal
é a causa do sentimento de satisfação que se sente numa reunião simpática; ali reina
como uma atmosfera moral saudável, onde se respira comodamente; dali se sai reconfortado,
porque se está impregnado de eflúvios salutares. Assim se explicam também a
ansiedade, o mal-estar indefinível que se sente num meio antipático, onde os pensamentos
malévolos provocam, por assim dizer, correntes fluídicas doentias.
A
comunhão de pensamentos produz, pois, uma espécie de efeito físico que reage sobre
o moral; é o que só o Espiritismo poderia fazer compreender. O homem o sente instintivamente,
uma vez que procura as reuniões onde ele sabe encontrar essa comunhão; nessas
reuniões homogêneas e simpáticas, ele haure novas forças morais; poder-se-ia
dizer que ali recupera as perdas fluídicas que ele faz cada dia pela irradiação
do pensamento, como recupera pelos alimentos as perdas do corpo material.
A
esses efeitos da comunhão de pensamentos junta-se um outro que lhe é conseqüência
natural, e que importa não perder de vista: é a força que adquire o pensamento
ou a vontade, pelo conjunto dos pensamentos ou vontades reunidas. Sendo a
vontade uma força ativa, esta força é multiplicada pelo número das vontades
idênticas, como a força muscular é multiplicada pelo número dos braços.
Estabelecido
este ponto, concebe-se que nas relações que se estabelecem entre os homens e os
Espíritos, haja, numa reunião onde reina uma perfeita comunhão de pensamentos,
uma força atrativa ou repulsiva que um indivíduo isolado nem sempre possui. Se,
até o presente, as reuniões muito numerosas são menos favoráveis, é pela dificuldade
de obter uma homogeneidade perfeita de pensamentos, o que se prende à imperfeição
da natureza humana sobre a Terra. Quanto mais as reuniões são numerosas, mais
nela se misturam elementos heterogêneos que paralisam a ação dos bons elementos,
e que são como os grãos de areia numa engrenagem. Não ocorre o mesmo nos mundos
mais avançados, e esse estado de coisas mudará sobre a Terra, à medida que os
homens se tornarem melhores.
Para
os Espíritas, a comunhão de pensamentos tem um resultado mais especial ainda.
Vimos o efeito dessa comunhão de homem a homem; o Espiritismo nos prova que ela
não é menor dos homens para os Espíritos, e reciprocamente. Com efeito, se o pensamento
coletivo adquire força pelo número, um conjunto de pensamentos idênticos, tendo
o bem por objetivo, terá mais força para neutralizar a ação dos maus Espíritos;
também vemos que a tática destes últimos é de levar à divisão e ao isolamento.
Sozinho, um homem pode sucumbir, ao passo que se sua vontade está corroborada
por outras vontades, ele poderá resistir, segundo o axioma: A união faz a
força, axioma verdadeiro no moral como no físico.
De
um outro lado, se a ação dos Espíritos malévolos pode ser paralisada por um pensamento
comum, é evidente que a dos bons Espíritos será secundada; sua influência salutar
não encontrará obstáculos; seus eflúvios fluídicos, não sendo detidos por correntes
contrárias, se derramarão sobre todos os assistentes, precisamente porque todos
os terão atraído pelo pensamento, não cada um em seu proveito pessoal, mas em proveito
de todos, segundo a lei de caridade. Descerão sobre eles em língua de fogo, para
nos servir de uma admirável imagem do Evangelho.
Assim,
pela comunhão de pensamentos, os homens se assistem entre si, e, ao mesmo tempo,
assistem os Espíritos e são por eles assistidos. As relações do mundo visível e
do mundo invisível não são mais individuais, são coletivas, e, por isto mesmo mais
poderosas para o proveito das massas, como para o dos indivíduos; em uma palavra,
ela estabelece a solidariedade, que é a base da fraternidade. Cada um não trabalha
só para si, mas para todos, e em trabalhando todos cada um nisso encontra sua conta;
é o que o egoísmo não compreende.
Graças
ao Espiritismo, pois, compreendemos o poder e os efeitos do pensamento coletivo;
explicamo-nos melhor o sentimento de bem-estar que se experimenta num meio homogêneo
e simpático; mas sabemos igualmente que ocorre o mesmo com os Espíritos, porque
eles também recebem os eflúvios de todos os pensamentos benevolentes que se elevam
para eles, como uma emanação de perfume. Aqueles que são felizes sentem uma maior
alegria desse concerto harmônico; aqueles que sofrem dele sentem um maior alívio.
Todas
as reuniões religiosas, seja qualquer culto a que pertençam, são fundadas sobre
a comunhão de pensamentos; é aí, com efeito, que ela deve e pode exercer toda a
sua força, porque o objetivo deve ser o desligamento do pensamento das amarras
da matéria. Infelizmente, a maioria se afastou deste princípio, à medida que
fizeram da religião uma questão de forma. Disto resultou que, cada um fazendo
consistir seu dever no cumprimento da forma, se acredita quite com Deus e com
os homens, quando praticou uma fórmula. Disto resulta ainda que cada um vai
aos lugares de reuniões religiosas com um pensamento pessoal, por sua
própria conta, e, o mais freqüentemente, sem nenhum sentimento de
confraternização em relação aos outros assistentes: ele está isolado no meio
da multidão, e não pensa no céu senão para si mesmo.
Não
era certamente assim que o entendia Jesus quando disse: "Quando estiverdes
vários reunidos em meu nome, eu estarei em vosso meio." Reunidos em meu
nome, quer dizer, com um pensamento comum; mas não se pode estar reunidos em
nome de Jesus sem assimilar os seus princípios, a sua doutrina; ora, qual é o
princípio fundamental da doutrina de Jesus? A caridade em pensamentos, em
palavras e em ações.
Os
egoístas e os orgulhosos mentem quando se dizem reunidos em nome de Jesus, porque
Jesus os desaprova por seus discípulos.
Tocados
por esses abusos e desvios, há pessoas que negam a utilidade das assembléias
religiosas, e, por conseguinte, dos edifícios consagrados a essas assembléias.
Em seu radicalismo, eles pensam que melhor seria construir hospícios do que
templos, tendo em vista que o templo de Deus está por toda a parte, que ele
pode ser adorado por toda a parte, que cada um pode pedir em sua casa e a toda
hora, ao passo que os pobres, os doentes e os enfermos têm necessidade de
lugares de refúgio.
Mas
do fato de que são cometidos abusos, de que se afastou do caminho reto, segue-se
que o caminho reto não existe, e que de tudo o que se abusa seja mau? Falar assim
é desconhecer a fonte e os benefícios da comunhão de pensamento que deve ser a
essência das assembléias religiosas; é ignorar as causas que a provocam. Que materialistas
professem semelhantes idéias, se o concebe; porque, por eles, em todas as coisas
fazem abstração da vida espiritual; mas da parte de espiritualistas, e melhor
ainda de Espíritas, isto seria um contra-senso. O isolamento religioso, como
o isolamento social, conduz ao egoísmo. Que alguns homens sejam
bastante fortes por si mesmos, bastante e largamente dotados pelo coração, para
que sua fé e sua caridade não tenham necessidade de ser aquecidas em um foco
comum, é possível; mas não ocorre assim com as massas, a quem é preciso um
estimulante, sem o qual elas se poderiam deixar ganhar pela indiferença. Além
disto, qual é o homem que possa se dizer bastante esclarecido para não ter nada
a aprender no que toca aos seus interesses futuros? Bastante perfeita para
abster-se de conselhos na vida presente? É sempre capaz de se instruir por si
mesmo? Não; ele precisa da maioria dos ensinamentos diretos de religião e de
moral, como em matéria de ciência. Sem contradita, esse ensinamento pode ser
dado por toda a parte, sob a abóbada do céu como sob a de um templo; mas por
que os homens não teriam lugares especiais para negócios do céu, como os têm
para os negócios da Terra? Por que não teriam assembléias religiosas, como eles
têm assembléias políticas, científicas e industriais? Está aí uma bolsa onde se
ganha sempre sem fazer ninguém perder nada. Isto não impede as fundações em
proveito dos infelizes; mas dizemos além que quando os homens compreenderem
melhor seus interesses do céu, haverá menos gente nos hospícios.
Se
as assembléias religiosas, nós falamos em geral, sem fazer alusão a nenhum culto,
muito freqüentemente se afastaram do objetivo primitivo principal, que é a comunhão
fraterna do pensamento; se o ensino que ali é dado nem sempre segue o movimento
progressivo da Humanidade é que os homens não realizam todos os progressos ao
mesmo tempo; o que eles não fazem num período, o fazem num outro; à medida que
se esclarecem, vêem as lacunas que existem em suas instituições, e as preenchem;
eles compreendem que o que era bom em uma época, em relação ao grau da
civilização, torna-se insuficiente num estado mais avançado, e restabelecem o
nível. O Espiritismo, nós o sabemos, é a grande alavanca do progresso em todas
as coisas; ele marca uma era de renovação. Saibamos, pois, esperar, e não peçamos
a uma época mais do que ela pode dar. Como as plantas, é preciso que as idéias
amadureçam para serem colhidos seus frutos. Saibamos, além disto, fazer as
concessões necessárias às épocas de transição, porque nada, na Natureza, se
opera de maneira brusca e instantânea.
Dissemos
que o verdadeiro objetivo das assembléias religiosas deve ser a comunhão de
pensamentos; é que, com efeito, a palavra religião quer dizer laço;
uma religião, em sua acepção ampla e verdadeira, é um laço que religa os
homens numa comunhão de sentimentos, de princípios e de crenças;
consecutivamente, esse nome foi dado a esses mesmos princípios codificados e
formulados em dogmas ou artigos de fé. É nesse sentido que se diz: a religião
política', no entanto, mesmo nesta acepção, a palavra religião não é
sinônimo de opinião; ela implica uma idéia particular: a de fé
conscienciosa; é porque se diz também: a fé política. Ora, os homens
podem se alistar, por interesse, num partido, sem ter a fé desse partido, e a
prova disto é o que o deixam, sem escrúpulo, quando encontram seu interesse em
outra parte, ao passo que aquele que o abraça por convicção é inabalável; ele
persiste ao preço dos maiores sacrifícios e é a abnegação dos interesses
pessoais que é a verdadeira pedra de toque da fé sincera. No entanto, se a renúncia
a uma opinião, motivada por interesse, é um ato de covardia desprezível, ela é respeitável,
ao contrário, quando é o fruto do reconhecimento do erro em que se está; é, então,
um ato de abnegação e de razão. Há mais coragem e grandeza em reconhecer abertamente
que se está errado, do que persistir, por amor-próprio, naquilo que se sabe ser
falso, e para não dar um desmentido a si mesmo, o que acusa mais teimosia do
que firmeza, mais orgulho do que julgamento, e mais fraqueza do que força. É mais
ainda: é a hipocrisia, porque se quer parecer o que não se é; é, além disso má
ação, porque é encorajar o erro por seu próprio exemplo.
O
laço estabelecido por uma religião, qualquer que lhe seja o objeto, é, pois, um
laço essencialmente moral, que religa os corações, que identifica os
pensamentos, as aspirações, e não é somente o fato de compromissos materiais,
que se quebram à vontade, ou do cumprimento de fórmulas que falam aos olhos
mais do que ao espírito. O efeito desse laço moral é de estabelecer entre
aqueles que une, como conseqüência da comunhão de objetivos e de sentimentos, a
fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. É
nesse sentido que se diz também: a religião da amizade, a religião da família.
Se
assim é, dir-se-á, o Espiritismo é, pois, uma religião? Pois bem, sim! sem
dúvida, Senhores; no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e disto
nos glorificamos, porque é a doutrina que fundamenta os laços da fraternidade e
da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as bases
mais sólidas: as próprias leis da Natureza.
Por
que, pois, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Pela razão de que não
há senão uma palavra para expressar duas idéias diferentes, e que, na opinião
geral, a palavra religião é inseparável da de culto; que ela desperta
exclusivamente uma idéia de forma, e que o Espiritismo não a tem. Se o Espiritismo se dissesse religião, o
público não veria nele senão uma nova edição, uma variante, querendo-se, dos
princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com um cortejo de
hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo,
e dos abusos contra os quais a opinião freqüentemente é levantada.
O
Espiritismo, não tendo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da
palavra, não se poderia, nem deveria se ornar de um título sobre o valor do
qual, inevitavelmente, seria desprezado; eis porque ele se diz simplesmente:
doutrina filosófica e moral.
As
reuniões espíritas podem, pois, ser mantidas religiosamente, quer dizer, com recolhimento
e o respeito que comporta a natureza séria dos assuntos dos quais ela se ocupa;
pode-se mesmo ali dizer, se for possível, as preces que, em lugar de serem
ditas em particular, são ditas em comum, sem ser por isto que se entendam por assembleias
religiosas. Que não se creia que esteja aí um jogo de palavras; a nuança
é perfeitamente clara, e a aparente confusão não vem senão da falta de uma
palavra para cada idéia.
Qual
é, pois, o laço que deve existir entre os Espíritas? Eles não são unidos entre
si por nenhum contrato material, por nenhuma prática obrigatória; qual é o
sentimento no qual devem se confundir todos os pensamentos? É um sentimento
todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o da caridade para todos, de
outro modo dito: o amor do próximo que compreende os vivos e os mortos, uma vez
que sabemos que os mortos sempre fazem parte da Humanidade.
A
caridade é a alma do Espiritismo: ela resume todos os deveres do homem para consigo
mesmo e para com os seus semelhantes; é porque pode se dizer que não há verdadeiro
Espírita sem caridade.
Mas
a caridade é ainda uma dessas palavras de sentido múltiplo, da qual é necessário
bem compreender toda a importância; e se os Espíritos não cessam de pregá-la e
de defini-la, é que, provavelmente, reconhecem que isto é ainda necessário.
O
campo da caridade é muito vasto; ele compreende duas grandes divisões que, por falta
de termos especiais, podem designar-se pelas palavras: Caridade beneficente
e caridade benevolente. Compreende-se facilmente a primeira, que é
naturalmente proporcional aos recursos materiais dos quais se dispõe; mas a
segunda está ao alcance de todo o mundo, do mais pobre como do mais rico. Se a
beneficência é forçosamente limitada, nenhuma outra senão a vontade pode pôr
limites à benevolência.
O
que é preciso, pois, para praticar a caridade benevolente? Amar seu próximo como
a si mesmo: ora, amando-se ao seu próximo quanto a si mesmo, se o amará muito; se
agirá para com outrem como se gosta que os outros ajam para conosco, não se desejará
nem se fará mal a ninguém, porque não gostaríamos que no-lo fizessem.
Amar
seu próximo é, pois, abjurar todo sentimento de ódio, de animosidade, de rancor,
de inveja, de ciúme, de vingança, em uma palavra, todo desejo e todo pensamento
de prejudicar; é perdoar os seus inimigos e restituir o bem onde haja o mal; é ser
indulgente para com as imperfeições de seus semelhantes e não procurar a palha
no olho de seu vizinho, então que não se vê a trave que está no seu; é ocultar
ou desculpar as faltas de outrem, em lugar de se comprazer em pô-las em relevo
pelo espírito de denegrir; é ainda não se fazer valer às custas dos outros; de
não procurar esmagar ninguém sob o peso de sua superioridade; de não desprezar
ninguém por orgulho. Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade prática,
sem a qual a caridade é uma palavra vã; é caridade do verdadeiro Espírita como
do verdadeiro cristão; aquela sem a qual aquele que diz: Fora da caridade
não há salvação, pronuncia a sua própria condenação, neste mundo tão bem
quanto no outro.
Quantas
coisas haveria a se dizer sobre este assunto! Quantas belas instruções nos dão,
sem cessar, os Espíritos! Sem o medo de ser muito longo e de abusar de vossa paciência,
senhores, seria fácil demonstrar que, em se colocando do ponto de vista do interesse
pessoal, egoísta, querendo-se, porque todos os homens não estão ainda maduros
para uma abnegação completa, para fazer o bem unicamente pelo amor ao bem, seria,
digo eu, fácil de demonstrar que têm tudo a ganhar agindo da maneira e tudo a perder
agindo de outro modo, mesmo em suas relações sociais; depois, o bem atrai o
bem e a proteção dos bons Espíritos; o mal atrai o
mal e abre a porta à maldade dos maus. Cedo ou tarde o orgulhoso é castigado
pela humilhação, o ambicioso pelas decepções, o egoísta pela ruína de suas
esperanças, o hipócrita pela vergonha de ser desmascarado; aquele que abandona
os bons Espíritos por eles é abandonado, e, de queda em queda, se vê, enfim, no
fundo do abismo, ao passo que os bons Espíritos levantam e sustentam aquele
que, em suas maiores provas, não deixa de confiar na Providência e não desvia jamais
do caminho reto; aquele, enfim, cujos secretos sentimentos não escondem nenhum
pensamento dissimulado de vaidade ou de interesse pessoal. Portanto, de um
lado, ganho assegurado; do outro, perda certa; cada um, em virtude de seu livre
arbítrio, pode escolher a chance que quer correr, mas não poderá tomar senão de
si mesmo as conseqüências de sua escolha.
Crerem
um Deus todo-poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e em sua imortalidade;
na preexistência da alma como única justificativa do presente; na pluralidade das
existências como meio de expiação, de reparação e de adiantamento intelectual e
moral; na perfectibilidade dos seres mais imperfeitos; na felicidade crescente
na perfeição; na eqüitativa remuneração do bem e do mal, segundo o princípio: a
cada um segundo as suas obras; na igualdade da justiça para todos, sem
exceções, favores nem privilégios para nenhuma criatura; na duração da expiação
limitada à da imperfeição; no livre arbítrio do homem, que lhe deixa sempre a
escolha entre o bem e o mal; crer na continuidade das relações entre o mundo
visível e o mundo invisível, na solidariedade que religa todos os seres
passados, presentes e futuros, encarnados e desencarnados, considerar a vida
terrestre como transitória e uma das fases da vida do Espírito, que é eterno;
aceitar corajosamente as provações, tendo em vista o futuro mais invejável do
que o presente; praticar a caridade em pensamentos, em palavras e em ações na
mais ampla acepção da palavra; se esforçar cada dia para ser melhor do que na
véspera, extirpando alguma imperfeição de sua alma; submeter todas as suas
crenças ao controle do livre exame e- da razão, e nada aceitar pela fé cega;
respeitar todas as crenças sinceras, por irracionais que nos pareçam, e não
violentar a consciência de ninguém; ver, enfim, nas diferentes descobertas da
ciência a revelação das leis da Natureza, que são as leis de Deus: eis o Credo,
a religião do Espiritismo, religião que pode se conciliar com todos os cultos,
quer dizer, com todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir
todos os Espíritas em uma santa comunhão de pensamentos, à espera que una todos
os homens sob a bandeira da fraternidade universal.
Com
a fraternidade, filha da caridade, os homens viverão em paz, se poupando os males
inumeráveis que nascem da discórdia, filha, a seu turno, do orgulho, do
egoísmo, da ambição, do ciúme e de todas as imperfeições da Humanidade.
O
Espiritismo dá aos homens tudo o que é preciso para sua felicidade neste mundo,
porque lhes ensina a se contentarem com aquilo que têm; que os Espíritas sejam,
pois, os primeiros a aproveitarem os benefícios que ele traz, e que inaugura
entre eles o reino da harmonia, que resplandecerá nas gerações futuras.
Os
Espíritos que nos cercam aqui são inumeráveis, atraídos pelo objetivo que nos propusemos
em nos reunindo, a fim de darem aos nossos pensamentos a força que nasce da
união. Doemos àqueles que nos são caros uma boa lembrança e um testemunho de
nossa afeição, os encorajamentos e as consolações àqueles que deles têm
necessidade. Façamos de maneira que cada um receba a sua parte dos sentimentos de
caridade benevolente, da qual estaremos animados, e que esta reunião traga os
frutos que todos estão no direito de esperá-los.
ALLAN KARDEC